Eunice Pereira
Eunice Pereira é natural de Lagoa da Prata, nasceu no dia 06/09, porém foi registrada pelo ´pai 10 dias depois, ou seja, dia 16/09. Ela descobriu sobre a diferença destes dias, quando precisou se matricular no ginásio, pois a mãe comemorava no dia seis. Desde então comemora as duas datas, pois gosta muito de comemorar o aniversário, mais que qualquer outra festa.
É a quinta filha de uma família de nove irmãos, sua mãe Antônia (in memória), era lavadeira, nascida na roça, após casar-se foi para cidade, seu pai João, que era pescador e pedreiro.
Sua infância foi muito pobre, moravam no terreno do avô, onde tinha várias casas, alguns tios moravam também nesse terreno. A casa dela era a mais simples e modesta, eles tinham fogão a lenha, dormiam todos em um mesmo cômodo, até a cama era dividida, dormia umas três crianças juntas, não havia cama para todos. Os lençóis eram feitos de panos de saco que a mãe comprava no armazém, alvejava e ficavam brancos, depois eram costurados.
Costumava brincar no quintal com as irmãs, pois a mãe não deixava sair, mas não sentia falta por ter muitos irmãos. Lembra de comer as frutas direto da árvore, e que precisava fazer algumas tarefas em casa, cada um tinha suas responsabilidades, tirava água na cisterna, mesmo sendo bem pequena. Suas tias contam que ela fazia tudo com muita alegria, cantava o dia inteiro.
Aprendeu a ler e escrever antes de ir para escola, tinha um tio paterno que era quase da idade da irmã mais velha, ele repetiu a mesma série umas 4 vezes, e as irmãs também já haviam repetido o ano na escola, então começaram a ensinar os menores na tentativa de não reprovarem. Estudavam escrevendo de carvão no muro que era pintado de branco, depois lavavam.
Naquela época colocavam os alunos mais pobres separados em uma sala, pensavam-se que eles não conseguiam aprender, por isso repetiam o ano, falava-se que eles estavam fadados a serem faxineiros ou lavadeiros, era repassado essa fala para as crianças, dessa forma não se ensinava as mesmas coisas que nas salas que tinham crianças de classes sociais mais altas, acreditavam que eles não tinham coordenação motora e habilidade para aprender, também por trabalharem no pesado e ficarem com as mãos calejadas e grossas.
A professora descobriu que ela sabia ler e escrever quase no final do ano, provavelmente repetiria o ano, no entanto, por esse fato foi para sala das crianças abastadas, os filhos das pessoas que a mãe dela lavava roupa.
Com 7 anos foi trabalhar em casa de família, ficou até os nove anos. Suas tarefas eram lavar vasilhas, algumas roupas, passava o pano na casa, entretanto gostava mesmo era de ser babá. Mesmo trabalhando continuou os estudos, pois trabalhava no contra turno da escola.
Sua mãe era uma mulher muito sábia, sempre aconselhava a estudar para ter mais oportunidades. Ela via o sofrimento da família, principalmente da mãe que era muito próxima dos filhos e pensava que precisava estudar mesmo, pois tinha muitos sonhos e acreditava que não conseguiria realizar por questões financeira.
Ama estudar, desde a infância, apaixonada por livros. Tem em grande estima pela professora Guiomar Sampaio, seu apoio foi fundamental quando mais precisou.
Na época do colegial o barulho da sala de aula e da escola no geral, assim como ter contato com outras pessoas era muito difícil, até mesmo esbarrar com alguém, então ela se refugiava na biblioteca, passava todo o intervalo lá.
Aos 15 anos saiu de casa e foi morar com outra família. Conta que o pai era muito bravo, e a forma de educar machucava fisicamente e emocionalmente, então quis sair de casa para ficar livre do sofrimento. A princípio seria apenas 4 dias para cuidar de uma criança, porque a mãe da criança faria uma cirurgia. Lembra que ao ver o bebê ficou encantada, parecia um anjinho do céu, muito lindo.
Para o cuidado desse bebê havia muitas recomendações, temiam que ele não se adaptasse, pois era muito apegado a mãe, não gostava de muito contato com outras pessoas. Como ela queria muito o emprego, ficou pensando em como deveria agir, e também queria ajudar a família. Para surpresa de todos no primeiro dia ela conseguiu que ele aceitasse ser cuidado por ela. Esse bebê não tinha um diagnóstico na época, mas hoje acredita que ele tivesse hipersensibilidade tátil, por isso a dificuldade de aceitar outra pessoa tocando nele, no entanto ela conseguiu quebrar essa barreira e se aproximar e o que seria apenas 4 dias, virou 2 anos, ficou nessa com essa família até se formar como professora.
Como ela ajudou bastante ao bebê nesse período, foi convidada pela APAE para ser professora, identificaram que ela tinha perfil de profissional da educação especial, trabalhando até o ano de 2015.conta que foi uma época difícil, ganhava pouco, as vezes era preciso arrecadar dinheiro em uma praça para os profissionais serem pagos.
No ano de 1983 teve o primeiro concurso do estado, e ela passou, sendo emprestada para APAE. Depois do concurso passou a ganhar mais, pode comprar o terreno e fazer sua casa, casou, teve filhos. No ano de 1993, com a filha mais nova precisou sair do trabalho, após ela crescer um pouco fez outro concurso da prefeitura e passou. Ao todo foram 4 concursos que ela passou, entrou e saiu.
Descobriu que tinha facilidade em passar em concurso, na parte acadêmica, mas tinha dificuldade em interação social, de responder de maneira adequada aos sentimentos das pessoas, dificuldade na linguagem interna, sentimentos, as pessoas a viam como alguém que tivesse deficiência intelectual, ao longo do tempo foi melhorando, mas tinha muita dificuldade na conversação. Falar e escrever sobre um tema que estudou, não tinha problema, inclusive fazia trabalhos de faculdade para as pessoas quando ainda não havia feito faculdade.
Diz que passou 10 anos fazendo trabalhos acadêmicos na intenção de juntar dinheiro para pagar uma faculdade, mesmo sem ter formação específica ela fazia TCC, na área de Direito, Letras, Matemática, Pedagogia, Psicologia, entre outros cursos. Os alunos compravam os livros e passavam para ela, que lia de forma dinâmica, conseguia gravar o que estavam nos livros, pois conta que tem mente fotográfica, após a leitura lembrava a página que continha as citações. Fala que conseguia ler um livro em 2 horas, independentemente do número de páginas e rápido fazia o resumo. Hoje não tem a memória tão boa, por causa da idade e porque teve COVID-19.
Sobre a formação acadêmica, a princípio queria fazer o curso de Comunicação e ser jornalista, porém o curso só era ofertado no Rio de Janeiro, contudo não teria condição de se deslocar para outra cidade. Pensou entrar na carreira militar, pois poderia estudar, passou na prova escrita, mas não passou no quesito físico pois faltou 2 centímetros para altura exigida, lhe deixando muito triste. Deste modo, conta que ser professora não foi sua primeira opção, que sofreu muito quando teve que desistir dos sonhos, se sentiu frustrada.
Fala que no começo pensou em ser pedagoga para trabalhar com orientação, e porque queria aumentar o salário, pois quem tinha nível superior ganhava mais. Fez o vestibular em Formiga e passou, depois fez a segunda graduação em Educação Especial Inclusiva. Conta ainda com 6 pós-graduações, dentro da área que trabalha, sempre que precisa de conhecimento vai em busca nas universidades, uma das pós-graduação é em Psicopedagogia e outra em Comunicação Inclusiva.
Diz ser autodidata, pois estamos falando de uma época que não tinha computador, era difícil buscar conhecimento, então ela viajava até Divinópolis para estudar, fazer cursos e aprimorar o conhecimento, fazia cursos de especialização. Fez especialização quando ainda não tinha formação superior, mesmo não recebendo a certificação no final, para ela o que mais importava era adquirir o conhecimento.
Quanto mais estudava gerava nela a busca de entender porque era tão diferente dos outros. Não entendia metáforas, brincadeiras ou piadas e ficava frustrada, se sentia mal, via o quanto era inteligente para umas coisas e nessa questão de relações se sentia burra. Queria saber o que precisava fazer para melhorar e não sofrer tanto. Foi em muitas consultas, teve vários diagnósticos, em uma delas recebeu o diagnóstico e não sabia do que se tratava (oligofrenia) precisou perguntar ao médico da escola o que significava, e descobriu que era o nome dado antigamente para deficiência mental grave, e ela pensou que não poderia ser verdade, pois conseguia aprender qualquer coisa que quisesse.
Com o passar do tempo não aceitou os diagnósticos errôneos, até que foi a um médico, que a princípio não acreditou muito, mas contou para ele que desde criança tinha um pensamento logo que acordava e que lhe perturbava muito, que era o de não querer mais viver, de tão difícil que era a vida para ela, pois não sabia o que as pessoas esperavam dela, as vezes era maltratada e não sabia o porquê, outras vezes ela falava o que não devia, visto que era impulsiva, mesmo sem intencionalidade também machucava as pessoas e queria entender, saber se havia alguma medicação que a ajudasse.
O médico disse que ela não precisava de medicação e sim de terapia, e diagnosticou de autismo, com dupla excepcionalidade para mais, que tem uma inteligência acima da média. Com isso deixou de procurar o que tinha e se aceitou do jeito que é. Como recomendado fez terapia, foi tentando mudar o que conseguia e o que não conseguia passou a aceitar.
Recebeu seu diagnóstico aos 40 anos, já estava divorciada, seu filho mais velho estava com 20 anos, foi nessa época começou a se entender. Por ter se tornado psicopedagoga a ajudou a entender o autismo, e com o nascimento do Pedro, seu neto, foi percebendo que ele era diferente. Sua filha o teve aos 15 anos, morava com a mãe ainda, então conviveu de perto com o neto desde o nascimento.
Quando a filha precisou voltou a estudar, foi a Eunice que cuidou do neto. Nessa época, por perceber algumas singularidades do neto o levou para alguns médicos o avaliarem, a maioria dizia que não havia nada de errado com o bebê, teve um médico que falou que era um retardo mental, outro médico em Divinópolis orientou que procurasse um neurologista, e então conseguiu o diagnóstico quando ele já tinha 1ano e 6 meses.
Era preciso fazer um exame genético, o que era difícil de ser feito, e muito caro, só havia em Belo Horizonte. Após esse exame descobriram uma síndrome rara que causava o autismo, nessa época a APAE e a prefeitura a ajudaram muito, fez diversos cursos em várias capitais, seu amadurecimento e seu aperfeiçoamento profissional deve a estas instituições.
Acredita que ninguém faz nada sozinho, então agradece a Deus e depois as instituições onde trabalhou que acreditou nela, na capacidade dela de colocar em prática os conhecimentos que adquiriu. Ainda que não tivesse feito curso de línguas, conseguia entender o que as pessoas estrangeiras falavam, as vezes conseguia traduzir livros em outras línguas, principalmente em inglês, mesmo sem saber como isso acontece.
Relata que não é fácil trabalhar com algo que é tão individual para cada pessoa, apesar de terem algumas características iguais, que são uteis para se obter resultado, no entanto precisa de mais atenção, terapias (psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional), e da ajuda familiar.
Ela diz não parecer ter autismo, todavia sente que precisa falar sobre isso para ajudar outras pessoas que possam estar sofrendo e não saberem do que se trata, entende que quando se nomeio o sofrimento o fardo fica mais leve. Sente-se enquadrar em um perfil, onde tem mais pessoas com as mesmas características e sente que não está sozinho, dessa forma ajuda a se aceitar, saber que tem coisas que estão acima do controle, que é algo involuntário, por mais conhecimento que se tenha e que se busque, nunca haverá resposta para tudo.
Compreende que as características fazem parte de cada pessoa, conhece alguns adultos, que tem autismo e falam as mesmas coisas que ela. Não veem o autismo com romantismo, não é algo bom, há muito sofrimento, as pessoas desse mundo têm muita dificuldade em receber as pessoas diferentes, há muito preconceito e discriminação, findam por separar as pessoas, sabe que não existe perfeição.
Ela sempre teve o sonho antigo de criar um local totalmente adaptado para o acolhimento das pessoas com autismo e suas famílias. Foi daí que surgiu o sonho chamado ASAP (Associação de Autistas de Lagoa da Prata) Foi criada oficialmente em 12 de agosto de 2015. Essa ação foi iniciada por um grupo de familiares, pela Terapeuta ocupacional Laura Borges, o neuropsicopedagogo, Everton Gomes, a assistente social Carol Castro. Foi criada com o objetivo de proporcionar à pessoa com autismo, o acesso à educação, saúde, lazer, alimentação, inclusão escolar e social. O acompanhamento familiar, através do projeto cuidar de quem cuida sempre foi uma preocupação dos gestores ds associação. O logomarca da associação foi criada pela colaboradora Carla Vidal e o slogan “Nossa lagoa mais azul”, foi criado pela Cássia Carine. As primeiras diretoras foram, Carol Castro e Eunice Pereira.
Sobre as horas vagas gosta de ir para roça e gosta de plantas. Não tem muita habilidade na cozinha. Não gosta do processo de viajar, por estar com outras pessoas, mas ama o mar, sente que acalma e a liga a Deus, gosta de água, tanto rio quanto mar, energia do lugar Sente que eles dão algo sem cobrar nada em troca. Não gosta de nadar, prefere caminhar na areia, pegar conchinhas. Gosta também de ficar em hotéis, sozinha, ir a locais que não conhece ninguém, que não precise interagir com outras pessoas.
A mensagem que deixa para os jovens iniciando no mercado de trabalho é que faça o que o faz mais feliz, dedique sua alma no que se tem mais prazer em fazer, assim irá fazer bem feito.
Ela tem o sonho de fazer um lugar totalmente adaptado para atender crianças com autismo, um local que tivesse atendimento e que os trabalhadores tivessem formação específica para lidar com as pessoas que tem autismo.
Em 2015 conversando com algumas mães resolveram dar os primeiros passos para formação de uma fundação ou associação que seria um espaço onde as mães pudessem conversar, as crianças pudessem ter acesso as terapias. Havia então um local de recreação chamado unidunitê, era da Elenice e ela cedeu o espaço para fazer recreação com as crianças, enquanto os adultos conversavam sobre a associação.
Contou com a ajuda de monitores, irmãos, tias de pessoas com autismo. Teve a parceria com o Everton que conseguiu vários estagiários para ajudar, sendo de grande proveito. Houveram outros profissionais como a Laura Borges (Terapeuta Ocupacional), a Eliomar Carvalhaes (Fonoaudiologa), a Carol Carta (Assistente Social) que também tem contribuído. No início mandaram convites para mães e se reuniram, houveram vários encontros, então fizeram a eleição da diretoria.
Colocaram o nome ASAP – Associação Autismo e Possibilidades, até então se ouvia falar de autismo, entretanto percebia que somente de forma negativa, a partir de então começaram a falar das coisas boas, o quanto poderia ajudar as crianças com autismo a evoluir, principalmente se tivessem um diagnóstico precoce, antes dos 3 anos.
Começaram então a resolver quanto a papelada, a Carol foi eleita presidente, ela como vice-presidente, ficaram nos anos de 2016 e 2017. Em seguida iniciaram o trabalho de conscientização com a sociedade, sobre o que é o autismo e do que as crianças precisam para poderem ter melhor qualidade de vida.
Organizaram congressos, roda de conversa, parcerias com outras instituições de Belo horizonte, levaram profissionais como neurologista e neuropediatra, de outras cidades para palestrar. Mães e autistas para conversar com as mães e as crianças da localidade. Não havia muito recurso e com a associação começaram a perceber que com estimulação e intervenção adequada era possível ter uma vida melhor no futuro.
Uma associação sem fins lucrativos e como precisavam de dinheiro, então faziam bingos, festas, organizavam atividades para arrecadar fundos. Ao final do mandado outras mães assumiram a direção, hoje a presidente é a Ana Claudia. A ASAP oferece aula de teatro, e psicólogo. Elas veem conseguindo mais visibilidade na sociedade, melhoria na fila de prioridade, no atendimento das instituições e órgãos, inclusive na colocação no mercado de trabalho.